sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A fabricação do outro, Opinião, A Tarde. 21/07/2010.

O discurso em defesa das identidades e diversidades tem se tornado hegemônico em certos espaços sociais. Constatamos este fato como uma conquista histórica, um avanço em relação a uma mentalidade excludente e homogeneizante do passado. A identidade reclamada como direito a diferença e a diversidade como a manifestação da liberdade de ser o que se é são pré-requisitos fundamentais das sociedades democráticas.  Mas bons consensos não raramente se deterioram em perniciosas ideologias. Deixam de ser produto da reflexão instauradora e se convertem em dogma religioso que ameaça a liberdade e a autonomia. O triunfo do particular e o declínio da universalidade nos cobram um preço. A defesa de um ponto de vista relativo, mormente se converte na incapacidade de dizer não ao absurdo.
 Herdeiro do volksgeist (espírito do povo), da defesa da cultura local e da comunidade orgânica, o discurso da identidade surge para contestar a ameaça de uma razão universalista que presunçosamente nos constrange em seu controle uniformizante. A manutenção das diferenças se tornou um mecanismo de resistência à imposição de juízos de valor e de verdade. Contra a supremacia do racionalismo monológico, adotamos a variedade e complexidade das diferentes culturas e modos de existir. Uma suspeita se levantou sobre as promessas iluministas de emancipação via o esclarecimento. Já não teríamos parâmetros universais para julgar o que é certo ou superior. A filosofia das luzes fracassou no seu intento de tornar o homem autônomo, pois não o reconheceu em sua diversidade.
 A humanidade abstrata, sem realidade corpórea, sem cor e sem marcas cede a construção de um homem de carne, com pertencimento territorial e histórico. A tentativa de colocar as culturas numa escala de valores (onde o ocidente ocuparia o topo) se revelou cientificamente falsa e politicamente nefasta. Toda valorização se denuncia como violência, como etnocentrismo mal disfarçado. Nasce o sujeito do contexto, testemunha do seu tempo, das tradições e de toda contingência possível. A filosofia da descolonização (síntese entre o marxismo e a etnologia) tomou forma e corpo permitindo aos europeus ilustrados expiar suas culpas pelos crimes cometidos na defesa do seu modelo de civilização.
 O cultivo do que é local, particular e acidental se opõe ao que é normativo e aniquila o risco de corrosão da identidade cultural. Até a ciência deverá converter-se numa etnociência, quiçá cumprindo o vaticínio premonitório de Lichtemberg no século XVIII: “Hoje, procura-se difundir por toda parte o saber, quem sabe se em alguns séculos não existirão universidades para restabelecer a antiga ignorância?” A palavra de ordem é “respeite as diferenças”. Mesmo que isto às vezes pareça um mero pretexto para abandonar os “diferentes” à própria (falta de) sorte.
 Tolerância, capacidade de conviver com os contrários, não se desconcertar diante do estranho, suportar (sem agressividade) o agonismo da vida pública são os maiores ganhos da defesa das identidades. Contudo, ao lado disto, assistimos ao efeito inverso num processo de narcisismo social que produz resultados desastrosos. Prisioneiros de suas identidades, alguns grupos sociais se armam contra os outros que eles não são. A defesa de seu grupo facilmente se transforma em recusa ao que é outro. Já vimos os alemães transformarem seu orgulho nacional em nazismo e muitos grupos que defendiam direitos iguais praticarem o racismo às avessas. Arvoram-se a determinar o ser dos outros, reduzindo-os a uma identidade definida pela negação da alteridade. O problema não está na identidade que assumimos ou na diversidade que livremente escolhemos e nos integramos. O perigo mora, ao lado. O contra-efeito de boa parte dos discursos em defesa da identidade está no recrudescimento da visão relativa ao outro, da identidade que lhes é outorgada por oposição complementar. O outro é um não-eu. O mecanismo de fabricação do outro pela negação de identidade e pertencimento a tal ou qual grupo específico se constitui a face excludente e homogeneizante do discurso que prega a inclusão das (suas) diferenças.
Ricardo Henrique Andrade
Professor de filosofia da UFRB


A invenção do diabo, Opinião, A Tarde. 19/6/2010.

Um amigo contou uma anedota que, além de risos, me suscitou reflexões sobre a vida universitária. Deus e o diabo seguiam em disputa. Deus criava o bem, mas o diabo, criando o oposto, sempre o superava. Então, Deus lançou seu derradeiro desafio: inventaria algo próximo da perfeição e com o mais alto nível de complexidade possível. Deus criou, então, o professor universitário. Depois de uma gargalhada satânica, o diabo anunciou sua superação: inventou o colega do professor universitário.

Mesmo conservando um alto grau de prestígio, há muito tempo o discurso científico perdeu sua áurea de neutralidade axiológica. Penso que isto tem algo a ver com o clima de disputas de egos do ambiente universitário. Lugar de vaidosas luzes ofuscantes, a universidade se tornou inóspita para muita gente inteligente. Sartre não optou por uma carreira universitária, talvez porque soubesse que lá “o inferno são os outros”.

Obviamente, desde que a ciência se tornou um trabalho coletivo, muitos avanços foram possíveis. É claro que a crítica não condescendente é sempre edificante. Mas o contexto da descoberta e da divulgação do trabalho científico é prenhe de histórias da mais baixa espiritualidade. Tramas, plágios, tramóias e um elenco infinito de expedientes sórdidos comparecem quando o fito é comprometer o trabalho alheio e arranhar reputações morais. Nesta guerra, passa-se do plano profissional ao pessoal em argumentos ad hominem que não disfarçam sua hostilidade vil.

Arrogante, detrator e não raramente perseguidor o colega do professor universitário é quase uma ameaça a qualidade do trabalho científico dos pares. Manipulando o quadro de horários, castigando nos pareceres técnicos, vetando a participação em projetos, este colega é um algoz implacável, sobretudo quando consegue um cargo qualquer de chefe de alguma coisa. Como saber é poder, o colega sabe o quanto pode ferir e trapacear. A universidade vive num eterno estado de natureza (em sentido hobbesiano): magister magistri lupus, um estado de guerra no qual o mestre é lobo do mestre.
 
Ricardo Henrique Andrade
Professor de filosofia da UFRB

Ultrarrealismo na Televisão, Opinião,A Tarde. 5/6/2010.

Ricardo Henrique Andrade*


Surge um novo gênero de reality TV: uma variante pérfida do documentário policial. Acostumamos-nos com a habitual bestialidade do noticiário policial da TV, mas não podemos transigir com alguns excessos. O que tem se visto não é apenas ficção de mau gosto. Amiúde grosseiro e sanguinário, num efeito de ultrarrealismo, o que foi criado para mostrar os crimes tem se tornado algo potencialmente criminoso. Como conseguiram piorar o que já era péssimo?


Ao filmar operações policiais a TV as tem influenciado, aviltando ainda mais a imagem dos supostos “antagonistas” e emoldurando os flagrantes abusos de poder numa narrativa capaz de emular com as manifestações dos mais baixos instintos pré-civilizatórios. Policiais e repórteres realizam um “documentário” macabro, correm ofegantes por ruas sombrias mostrando a “guerra sangrenta” que o trabalho deles ajuda a promover. Armas, viaturas, refletores se misturam às câmeras, microfones e cabos. Quem assina o roteiro? E a direção? Será que pagam algum cachê aos “protagonistas”?

Para quem o assiste cotidianamente, o mal na TV já não cria perplexidades, banaliza-se como feijão-com-arroz de uma existência alimentada pela desgraça. Chavões truculentos e uma sonoplastia trash criam a ambiência psicológica ideal para a apreciação dos horrores. A perseguição narrada aos berros, o pranto das mães sob cadáveres perfurados e os casos de pedofilia aparecem mixados entre anúncios de “remédios” e da agiotagem legalizada.  


Os suspeitos nesse “documentário” são abordados como culpados por pistolas e microfones num depoimento simultâneo para polícia e para o programa. Representantes do poder público ganham com a fama de implacáveis. É espantoso ver autoridades que parecem apoiar este flagrante desrespeito aos direitos humanos, eles comentam as cenas mais sórdidas e recebem elogios entusiasmados dos apresentadores pelo seu trabalho, sobretudo quando é notoriamente violento. Este gênero de programa policial não é jornalístico, nem etnográfico, é um atentado repugnante contra direitos fundamentais.



* Ricardo Henrique Andrade é professor de filosofia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Email: reseandrade@gmail.com.

Retórica dos números, Opinião, A Tarde. 4/4/2010.

Ricardo Henrique Andrade
Professor de filosofia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Email: reseandrade@gmail.com


Os números das estatísticas na publicidade exercem um fascínio que nos deixa por vezes entorpecidos. Há uma profunda diferença entre a chamada “pesquisa de opinião” que serve mais imediatamente as decisões de mercado e a “pesquisa científica”. Embora ambas sigam certos procedimentos metodológicos comuns, apenas a pesquisa científica pode responder as obrigações éticas exigidas pela sociedade. Por isto, vejo com preocupação o slogan da campanha lançada pela Secretaria da Segurança Pública: “o crack é responsável por 80% dos homicídios na Bahia”. Concordo que a gravidade do problema reclame por respostas contundentes em termos de comunicação e de esclarecimento público. Reconheço que de um modo geral isto tem dado certo contra o cigarro, embora tenha minhas restrições a alguns apelos. Contudo, a complexidade das questões derivadas da avassaladora disseminação do crack requer estratégias de comunicação mais qualificadas.

Até quando vamos demonizar as drogas? Com esta atitude deixamos de discutir, com franqueza, o seu uso! Esta propaganda, de eficácia duvidosa, peca, entre outras razões, por corroborar com a visão geral de criminalização dos usuários de drogas. Por não distinguir, claramente, o seu público alvo. Por ocultar os verdadeiros sujeitos responsáveis pela violência social. Declarar guerra às drogas – no melhor estilo: “pânico e terror” – é retroalimentar uma política de violência que nos atinge a todos, usuários ou não, de drogas lícitas ou ilícitas. Para quem serve uma propaganda que se vale do recurso a autoridade dos números para ludibriar o senso crítico? Quando se supõe ter algum! O poder público tem a obrigação de informar a verdade, sob pena de por em risco a própria segurança social. Neste caso, nos deve um tipo de informação que tenha um mínimo de credibilidade.

Não tenho a menor condição técnica de desmentir os dados afirmados nesta propaganda. Mas como tenho direito a certo ceticismo moderado, coloco aqui algumas dúvidas que me inquietam. Como leigo, gostaria apenas de compartilhar questões que talvez ganhem mais luz nas palavras dos especialistas em segurança pública, drogas e comunicação social. A primeira questão é sobre a autoria desta pesquisa: quem a assina? Quais foram os pesquisadores, a instituição ou comunidade científica que a realizou? Qual o grau de confiabilidade científica que possuem esses dados? Quem os aferiu? Sempre ouvi falar que a maioria absoluta dos homicídios não é sequer esclarecida pela polícia. E eis que agora já conhecemos de uma só vez o “responsável” de pelo menos 80% deles!

 A segunda questão é sobre sua metodologia e transparência: o que se quer mesmo dizer com a expressão: “responsável por 80% dos homicídios”? De que tipo de responsabilidade se fala? A do traficante? A do usuário? Fala-se dos efeitos na saúde dos usuários? Fala-se do confronto com a polícia ou com os pares? Qual foi exatamente o papel do crack em cada uma dessas mortes? Não é necessário ter lido filósofo David Hume para suspeitar desta abstrata conexão causal. Uma pesquisa sobre um assunto tão grave não poderia ser divulgada com esta vagueza. Sei que as propagandas não são feitas para cientistas, mas o público em geral também necessita ser informado de maneira inteligente.

A terceira é sobre sua finalidade: para quem foi feita esta campanha? Para os jovens? Com que objetivo? Intimidá-los? Como ela seria capaz de edificá-los? O que pretendem os engenhosos e novidadeiros publicitários que a criaram? Ela não esclarece, não educa, não é capaz de mudar a atitude nem do usuário e nem do traficante. Ela os confunde na obscuridade de um cenário caricato de filme de terror. Com uma estética trash, com recurso abusivo a falsa autoridade dos números e com um precário teor informativo, esta propaganda é mais um desserviço de (in)segurança pública. Para autoridades que falam abertamente em saneamento ao nomear suas ações, esta propaganda servirá para desviar a atenção da escandalosa afronta aos direitos humanos que assistimos diariamente: a violência policial que é responsável pela morte de jovens negros e pobres na periferia. 

Dito pelo não dito, Opinião, A Tarde. 20/3/2010.

Algumas canções de Chico Buarque, como “Meu guri”, são casos paradigmáticos de narrativa subliminar. A história contada pela personagem, uma mãe engabelada pelo filho delinqüente, cria outra, que ela de fato não diz, mas que de algum modo fica evidente no que é dito. É o dito pelo não dito. Nossa linguagem confunde suas próprias funções: é diretiva, quando auspicia informar; é informativa quando pretende emocionar; é expressiva quando o único propósito é guiar nossas ações. No caso das canções de Chico, esta competência produz um efeito estético de extraordinária beleza.

Mas quando falamos de decisões na esfera pública, o uso de sentidos subliminares pode representar um risco à manutenção de valores que nos são caros. Por séculos nossa linguagem foi capturando preconceitos e amalgamando-os em significados ocultos que exige de nós uma atitude crítica e vigilante. O desvelamento desses sentidos perversos deve ser parte do exercício cotidiano de nossa inteligência. Ademais, a sobrevivência dos nossos direitos depende da capacidade de resistir a manobras retóricas opressoras.  Não sei com que nível de consciência algumas autoridades públicas parecem abusar dos sentidos e das propriedades performativas da linguagem, mesmo quando as conseqüências desses “deslizes” ultrapassam o campo meramente semântico e se transformam em crimes contra os direitos humanos.

Quando políticos e apresentadores de programas sensacionalistas de rádio e TV repetem exaustivamente expressões como: “guerra contra o tráfico”, “combate ao crime”, “melhor tombar do lado de lá, do que do lado cá”, constatamos a espúria e empobrecida percepção social das pessoas de quem esperamos o mínimo de bom senso. Quando a cúpula da segurança pública se dá a “licença poética” para utilizar expressões como saneamento (sic) em lugar de pacificação, ao se referir as operações policiais nos territórios de paz, o que podemos esperar senão uma violência policial sem precedentes? Certamente milhares de jovens morrerão, sob soluços maternos, de papo pro ar, neste projeto sanitário, que mais parece uma metáfora do nazismo.
Ricardo Henrique Andrade
Professor de filosofia da UFRB

Não vá que é barril..., Opinião, A Tarde. 15/12/2009.

  Os fenômenos da cultura e da educação são complexos e não autorizam leituras lineares, especialmente quando as questões teóricas indicam opções políticas em disputa. Na nova configuração do espaço público, ações formais e não formais se somam para estabelecerem práticas diversas de cultura e educação. Vejo nisto uma excelente oportunidade para que a escola funcione como um lugar privilegiado de elaboração de uma cultura de paz. Uma escola aberta à comunidade e engajada em suas aspirações por democracia e transformação social poderá trazer importantes contribuições na redução dos índices de violência. Somente a partir das expressões culturais a educação formal encontrará os elementos dos quais precisa para se livrar dos embaraços que um processo de urbanização apressado e desordenado produziu em algumas décadas. A paz, tanto quanto a violência, se alimentam das substâncias oriundas da cultura, assim, a escola poderá ser um lugar fundamentalmente estratégico na mediação desses valores que estão em permanente conflito.

Não é novidade o fato de que nas metrópoles brasileiras os casos de violência ocorrem com maior incidência nas áreas socialmente vulneráveis. Os homicídios, por exemplo, se concentram nos bolsões de pobreza, onde a ausência de políticas públicas é flagrante e a população, em sua maioria negra, é massacrada no dia-a-dia pela violência das polícias. E é nesses lugares, onde viver é bem mais difícil, que surgem manifestações no âmbito da cultura popular capazes de refletir, para além do imponderável próprio da arte, uma série de posições políticas que são, no mínimo, provocativas. Entre as canções que prometem repetir-se a exaustão neste verão, há uma que traz um valioso conselho de proteção à vida, desses que nos recordam as lições que nos acostumamos a ouvir (em outra linguagem) de nossos pais e mestres: “trocar tiro com a Rondesp, dá de testa com a Civil – não vá que é barril”.  Nesta letra do Fantasmão, o recado aos jovens é direto, sem rodeios: não vá que é barril!

Nestes versos a música toca diretamente em questões que nos aflige: como abordar a violência que nos alcança cotidianamente de todas as maneiras? Qual poderá ser a nossa resposta à violência policial? Com seu sotaque baiano, periférico, o Fantasmão sugere um artifício, aparentemente covarde e ladino, mas na verdade prenhe de sabedoria: não vá que é barril! A violência, em todas suas formas de manifestação, já são temas recorrentes na produção da cultura e este é o âmbito legítimo no qual devemos apostar nossas fichas. As questões relacionadas, por exemplo, ao uso das drogas devem ser abordadas a partir dos vetores culturais, no campo das idéias e da sensibilidade. O uso da força bruta, decididamente, não é o nosso negócio.

Os grupos culturais já compreenderam os elementos simbólicos como ensejos para o agonismo político. Resta a família e a escola repensar seus papeis na proteção aos jovens e isto passa por uma revisão nas formas de expressão dos valores culturais e até mesmo uma redefinição desses próprios valores. Ora, esta tarefa de orientação política e moral é missão da escola e da família, tanto quanto não é uma obrigação para as artes. Continua sendo um problema teórico interessante pensar o papel da escola e o engajamento das artes nos processos de “redenção social”. Contudo, não podendo aprofundar este tema aqui, gostaria apenas de provocar os leitores com a seguinte consideração: a violência urbana não é, apenas, uma questão de polícia e o modo de resolver esses problemas passa antes pela saúde, proteção social, cultura e educação. Um exemplo sintomático de equívoco político-lingüístico, mormente repetido, está no uso generalizado pela mídia da expressão: “combate ao tráfico”. Ela acentua o caráter bélico deste conflito, quando me pareceria mais sensato e efetivo propor uma disputa inteligente e persuasiva no campo simbólico, numa esfera essencialmente cultural e pedagógica. A violência exige respostas urgentes e criativas das escolas e da sociedade. Exige a produção de uma cultura mais inclusiva e pluralista. De outro modo: não vá que é barril!
Ricardo Henrique Andrade
Professor de filosofia da UFR

Verdade como escolha justificada, Opinião, A Tarde. 21/9/2009.

Em breve

Escola:território da paz, Opinião, A Tarde. 28/7/2009.

Em breve

Tempo da delicadeza, Opinião, A Tarde. 28/5/2009.

A palavra educação possui muitos sentidos. Gostaria de destacar apenas um, menos técnico e mais corriqueiro. Exatamente aquele que temos em mente quando falamos de uma “boa educação” ou de alguém “bem educado”. Quando usamos a palavra educação nesse sentido, geralmente não pensamos em nenhuma teoria pedagógica, pelo menos, não explicitamente. Falamos apenas de certa urbanidade que o senso-comum sabe reconhecer e valorizar. Ser bem educado ou ter educação, em sentido comum, significa dominar uma boa técnica de conduta social, saber conviver com os outros e não se permitir, por exemplo, ceder por impulso a uma manifestação pública de baixa espiritualidade.

O indivíduo bem educado, não é um bajulador, um manipulador das atenções com gestos calculados, nem o portador de uma irritante disposição de estar de bem com a vida. Ele não é o “homem cordial” do Sérgio Buarque de Holanda, nem é o “cristão” de Nietzsche. Bem educado é aquele que é capaz de um ato de comedimento que pode combinar tristeza com discrição, o entusiasmo com a elegância; ele sabe subordinar sua aversão aos adversários aos limites do respeito e sua generosidade não excede os contornos da sensatez. Ter boa educação é o mesmo que ser polido nas relações públicas e pessoais. E polidez não é apenas um verniz da ética, poderá ser uma ética por inteiro: uma verdadeira deontologia das relações humanas.

Creio que entre alguns educadores a polidez anda mesmo “em baixa” – seja como práxis (é lamentável reconhecer!), seja como conceito, como concepção. E é nessa segunda dimensão que me detenho aqui. Acusam a polidez de ser caudatária de uma construção civilizacão tipicamente européia e burguesa; compreendem-na como uma sujeição aos valores de uma classe social dominante ou como submissão voluntária às pressões e convenções sociais das quais deveríamos, por dever emancipatório, nos libertar. Quiçá não haja nada de errado nesta descrição da polidez, a questão é saber: nossa ruptura com o passado deverá necessariamente abolir esta virtude republicana? Não a consideramos vantajosa, e até mesmo imprescindível, para as nossas aspirações democráticas? E convenhamos, a polidez não é um apanágio da cultura ocidental. É só pensar nos asiáticos e africanos e lembrar da nossa colonização sangrenta que mostrou aos próprios europeus que eles não eram assim tão civilizados.

Mas o ponto mais grave da recusa ao bom trato é permitir que uma orientação ideológica qualquer, difusamente revolucionária, sirva como pretexto teórico e político para a violência simbólica, para uma ruptura radical com toda possibilidade de diálogo. Contra a polidez evocam argumentos de índole moral e psicológica. Dizem que ela não é desejável pois seria incompatível com a sinceridade ou porque ela decorre de uma esmagadora pressão do superego. Desse modo, um suposto acordo consigo e a liberação de “impulsos autênticos” dão azo a uma cretina grosseria.

É claro que há contextos em que a boa educação não é aplicável. Não a utilizamos diante de um facínora ou num protesto de natureza coletiva. Polidez não poderia servir de estratégia para nenhum tipo de revolução. Diante da dor, do desespero, da profunda angústia, a polidez parece uma caricatura frágil da real indiferença. Há algo na polidez que é distância, hiato, decalque. De muito perto, nenhum espelho é suficientemente polido. Mas à distância pressuposta no bom trato não se pode exceder como ocorre no insulto. Ao nomear uma pessoa com o nome de um ser inanimado, de um animal ou de qualquer outra coisa, instalamos um tipo de ruptura que encerra o diálogo.

Há muitos educadores que prezam pela polidez, mas supõem que ela não deva ser ensinada nas escolas. Dizem: “isso não é problema para escola, a boa educação vem do berço, da família”. É claro que a família tem um papel fundamental na construção desses valores e não podemos deixar de cobrar dos pais e responsáveis uma ativa colaboração nesse processo de preparação para o exercício da vida citadina, da cidadania. Na verdade recuperar aquilo que outrora chamávamos de boa educação é uma tarefa que uma nova escola deve repartir com todas as instâncias sociais. Uma nova escola que saiba aprender com o passado a boa educação, para assim eternizar no presente o tempo da delicadeza.
Ricardo Henrique Andrade
Professor de filosofia da UFRB

Mestre e discípulo, a amizade possível, Opinião, A Tarde. 15/7/2008.

Em breve