sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Retórica dos números, Opinião, A Tarde. 4/4/2010.

Ricardo Henrique Andrade
Professor de filosofia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Email: reseandrade@gmail.com


Os números das estatísticas na publicidade exercem um fascínio que nos deixa por vezes entorpecidos. Há uma profunda diferença entre a chamada “pesquisa de opinião” que serve mais imediatamente as decisões de mercado e a “pesquisa científica”. Embora ambas sigam certos procedimentos metodológicos comuns, apenas a pesquisa científica pode responder as obrigações éticas exigidas pela sociedade. Por isto, vejo com preocupação o slogan da campanha lançada pela Secretaria da Segurança Pública: “o crack é responsável por 80% dos homicídios na Bahia”. Concordo que a gravidade do problema reclame por respostas contundentes em termos de comunicação e de esclarecimento público. Reconheço que de um modo geral isto tem dado certo contra o cigarro, embora tenha minhas restrições a alguns apelos. Contudo, a complexidade das questões derivadas da avassaladora disseminação do crack requer estratégias de comunicação mais qualificadas.

Até quando vamos demonizar as drogas? Com esta atitude deixamos de discutir, com franqueza, o seu uso! Esta propaganda, de eficácia duvidosa, peca, entre outras razões, por corroborar com a visão geral de criminalização dos usuários de drogas. Por não distinguir, claramente, o seu público alvo. Por ocultar os verdadeiros sujeitos responsáveis pela violência social. Declarar guerra às drogas – no melhor estilo: “pânico e terror” – é retroalimentar uma política de violência que nos atinge a todos, usuários ou não, de drogas lícitas ou ilícitas. Para quem serve uma propaganda que se vale do recurso a autoridade dos números para ludibriar o senso crítico? Quando se supõe ter algum! O poder público tem a obrigação de informar a verdade, sob pena de por em risco a própria segurança social. Neste caso, nos deve um tipo de informação que tenha um mínimo de credibilidade.

Não tenho a menor condição técnica de desmentir os dados afirmados nesta propaganda. Mas como tenho direito a certo ceticismo moderado, coloco aqui algumas dúvidas que me inquietam. Como leigo, gostaria apenas de compartilhar questões que talvez ganhem mais luz nas palavras dos especialistas em segurança pública, drogas e comunicação social. A primeira questão é sobre a autoria desta pesquisa: quem a assina? Quais foram os pesquisadores, a instituição ou comunidade científica que a realizou? Qual o grau de confiabilidade científica que possuem esses dados? Quem os aferiu? Sempre ouvi falar que a maioria absoluta dos homicídios não é sequer esclarecida pela polícia. E eis que agora já conhecemos de uma só vez o “responsável” de pelo menos 80% deles!

 A segunda questão é sobre sua metodologia e transparência: o que se quer mesmo dizer com a expressão: “responsável por 80% dos homicídios”? De que tipo de responsabilidade se fala? A do traficante? A do usuário? Fala-se dos efeitos na saúde dos usuários? Fala-se do confronto com a polícia ou com os pares? Qual foi exatamente o papel do crack em cada uma dessas mortes? Não é necessário ter lido filósofo David Hume para suspeitar desta abstrata conexão causal. Uma pesquisa sobre um assunto tão grave não poderia ser divulgada com esta vagueza. Sei que as propagandas não são feitas para cientistas, mas o público em geral também necessita ser informado de maneira inteligente.

A terceira é sobre sua finalidade: para quem foi feita esta campanha? Para os jovens? Com que objetivo? Intimidá-los? Como ela seria capaz de edificá-los? O que pretendem os engenhosos e novidadeiros publicitários que a criaram? Ela não esclarece, não educa, não é capaz de mudar a atitude nem do usuário e nem do traficante. Ela os confunde na obscuridade de um cenário caricato de filme de terror. Com uma estética trash, com recurso abusivo a falsa autoridade dos números e com um precário teor informativo, esta propaganda é mais um desserviço de (in)segurança pública. Para autoridades que falam abertamente em saneamento ao nomear suas ações, esta propaganda servirá para desviar a atenção da escandalosa afronta aos direitos humanos que assistimos diariamente: a violência policial que é responsável pela morte de jovens negros e pobres na periferia. 

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