sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Dito pelo não dito, Opinião, A Tarde. 20/3/2010.

Algumas canções de Chico Buarque, como “Meu guri”, são casos paradigmáticos de narrativa subliminar. A história contada pela personagem, uma mãe engabelada pelo filho delinqüente, cria outra, que ela de fato não diz, mas que de algum modo fica evidente no que é dito. É o dito pelo não dito. Nossa linguagem confunde suas próprias funções: é diretiva, quando auspicia informar; é informativa quando pretende emocionar; é expressiva quando o único propósito é guiar nossas ações. No caso das canções de Chico, esta competência produz um efeito estético de extraordinária beleza.

Mas quando falamos de decisões na esfera pública, o uso de sentidos subliminares pode representar um risco à manutenção de valores que nos são caros. Por séculos nossa linguagem foi capturando preconceitos e amalgamando-os em significados ocultos que exige de nós uma atitude crítica e vigilante. O desvelamento desses sentidos perversos deve ser parte do exercício cotidiano de nossa inteligência. Ademais, a sobrevivência dos nossos direitos depende da capacidade de resistir a manobras retóricas opressoras.  Não sei com que nível de consciência algumas autoridades públicas parecem abusar dos sentidos e das propriedades performativas da linguagem, mesmo quando as conseqüências desses “deslizes” ultrapassam o campo meramente semântico e se transformam em crimes contra os direitos humanos.

Quando políticos e apresentadores de programas sensacionalistas de rádio e TV repetem exaustivamente expressões como: “guerra contra o tráfico”, “combate ao crime”, “melhor tombar do lado de lá, do que do lado cá”, constatamos a espúria e empobrecida percepção social das pessoas de quem esperamos o mínimo de bom senso. Quando a cúpula da segurança pública se dá a “licença poética” para utilizar expressões como saneamento (sic) em lugar de pacificação, ao se referir as operações policiais nos territórios de paz, o que podemos esperar senão uma violência policial sem precedentes? Certamente milhares de jovens morrerão, sob soluços maternos, de papo pro ar, neste projeto sanitário, que mais parece uma metáfora do nazismo.
Ricardo Henrique Andrade
Professor de filosofia da UFRB

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