sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Não vá que é barril..., Opinião, A Tarde. 15/12/2009.

  Os fenômenos da cultura e da educação são complexos e não autorizam leituras lineares, especialmente quando as questões teóricas indicam opções políticas em disputa. Na nova configuração do espaço público, ações formais e não formais se somam para estabelecerem práticas diversas de cultura e educação. Vejo nisto uma excelente oportunidade para que a escola funcione como um lugar privilegiado de elaboração de uma cultura de paz. Uma escola aberta à comunidade e engajada em suas aspirações por democracia e transformação social poderá trazer importantes contribuições na redução dos índices de violência. Somente a partir das expressões culturais a educação formal encontrará os elementos dos quais precisa para se livrar dos embaraços que um processo de urbanização apressado e desordenado produziu em algumas décadas. A paz, tanto quanto a violência, se alimentam das substâncias oriundas da cultura, assim, a escola poderá ser um lugar fundamentalmente estratégico na mediação desses valores que estão em permanente conflito.

Não é novidade o fato de que nas metrópoles brasileiras os casos de violência ocorrem com maior incidência nas áreas socialmente vulneráveis. Os homicídios, por exemplo, se concentram nos bolsões de pobreza, onde a ausência de políticas públicas é flagrante e a população, em sua maioria negra, é massacrada no dia-a-dia pela violência das polícias. E é nesses lugares, onde viver é bem mais difícil, que surgem manifestações no âmbito da cultura popular capazes de refletir, para além do imponderável próprio da arte, uma série de posições políticas que são, no mínimo, provocativas. Entre as canções que prometem repetir-se a exaustão neste verão, há uma que traz um valioso conselho de proteção à vida, desses que nos recordam as lições que nos acostumamos a ouvir (em outra linguagem) de nossos pais e mestres: “trocar tiro com a Rondesp, dá de testa com a Civil – não vá que é barril”.  Nesta letra do Fantasmão, o recado aos jovens é direto, sem rodeios: não vá que é barril!

Nestes versos a música toca diretamente em questões que nos aflige: como abordar a violência que nos alcança cotidianamente de todas as maneiras? Qual poderá ser a nossa resposta à violência policial? Com seu sotaque baiano, periférico, o Fantasmão sugere um artifício, aparentemente covarde e ladino, mas na verdade prenhe de sabedoria: não vá que é barril! A violência, em todas suas formas de manifestação, já são temas recorrentes na produção da cultura e este é o âmbito legítimo no qual devemos apostar nossas fichas. As questões relacionadas, por exemplo, ao uso das drogas devem ser abordadas a partir dos vetores culturais, no campo das idéias e da sensibilidade. O uso da força bruta, decididamente, não é o nosso negócio.

Os grupos culturais já compreenderam os elementos simbólicos como ensejos para o agonismo político. Resta a família e a escola repensar seus papeis na proteção aos jovens e isto passa por uma revisão nas formas de expressão dos valores culturais e até mesmo uma redefinição desses próprios valores. Ora, esta tarefa de orientação política e moral é missão da escola e da família, tanto quanto não é uma obrigação para as artes. Continua sendo um problema teórico interessante pensar o papel da escola e o engajamento das artes nos processos de “redenção social”. Contudo, não podendo aprofundar este tema aqui, gostaria apenas de provocar os leitores com a seguinte consideração: a violência urbana não é, apenas, uma questão de polícia e o modo de resolver esses problemas passa antes pela saúde, proteção social, cultura e educação. Um exemplo sintomático de equívoco político-lingüístico, mormente repetido, está no uso generalizado pela mídia da expressão: “combate ao tráfico”. Ela acentua o caráter bélico deste conflito, quando me pareceria mais sensato e efetivo propor uma disputa inteligente e persuasiva no campo simbólico, numa esfera essencialmente cultural e pedagógica. A violência exige respostas urgentes e criativas das escolas e da sociedade. Exige a produção de uma cultura mais inclusiva e pluralista. De outro modo: não vá que é barril!
Ricardo Henrique Andrade
Professor de filosofia da UFR

Nenhum comentário:

Postar um comentário