sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Tempo da delicadeza, Opinião, A Tarde. 28/5/2009.

A palavra educação possui muitos sentidos. Gostaria de destacar apenas um, menos técnico e mais corriqueiro. Exatamente aquele que temos em mente quando falamos de uma “boa educação” ou de alguém “bem educado”. Quando usamos a palavra educação nesse sentido, geralmente não pensamos em nenhuma teoria pedagógica, pelo menos, não explicitamente. Falamos apenas de certa urbanidade que o senso-comum sabe reconhecer e valorizar. Ser bem educado ou ter educação, em sentido comum, significa dominar uma boa técnica de conduta social, saber conviver com os outros e não se permitir, por exemplo, ceder por impulso a uma manifestação pública de baixa espiritualidade.

O indivíduo bem educado, não é um bajulador, um manipulador das atenções com gestos calculados, nem o portador de uma irritante disposição de estar de bem com a vida. Ele não é o “homem cordial” do Sérgio Buarque de Holanda, nem é o “cristão” de Nietzsche. Bem educado é aquele que é capaz de um ato de comedimento que pode combinar tristeza com discrição, o entusiasmo com a elegância; ele sabe subordinar sua aversão aos adversários aos limites do respeito e sua generosidade não excede os contornos da sensatez. Ter boa educação é o mesmo que ser polido nas relações públicas e pessoais. E polidez não é apenas um verniz da ética, poderá ser uma ética por inteiro: uma verdadeira deontologia das relações humanas.

Creio que entre alguns educadores a polidez anda mesmo “em baixa” – seja como práxis (é lamentável reconhecer!), seja como conceito, como concepção. E é nessa segunda dimensão que me detenho aqui. Acusam a polidez de ser caudatária de uma construção civilizacão tipicamente européia e burguesa; compreendem-na como uma sujeição aos valores de uma classe social dominante ou como submissão voluntária às pressões e convenções sociais das quais deveríamos, por dever emancipatório, nos libertar. Quiçá não haja nada de errado nesta descrição da polidez, a questão é saber: nossa ruptura com o passado deverá necessariamente abolir esta virtude republicana? Não a consideramos vantajosa, e até mesmo imprescindível, para as nossas aspirações democráticas? E convenhamos, a polidez não é um apanágio da cultura ocidental. É só pensar nos asiáticos e africanos e lembrar da nossa colonização sangrenta que mostrou aos próprios europeus que eles não eram assim tão civilizados.

Mas o ponto mais grave da recusa ao bom trato é permitir que uma orientação ideológica qualquer, difusamente revolucionária, sirva como pretexto teórico e político para a violência simbólica, para uma ruptura radical com toda possibilidade de diálogo. Contra a polidez evocam argumentos de índole moral e psicológica. Dizem que ela não é desejável pois seria incompatível com a sinceridade ou porque ela decorre de uma esmagadora pressão do superego. Desse modo, um suposto acordo consigo e a liberação de “impulsos autênticos” dão azo a uma cretina grosseria.

É claro que há contextos em que a boa educação não é aplicável. Não a utilizamos diante de um facínora ou num protesto de natureza coletiva. Polidez não poderia servir de estratégia para nenhum tipo de revolução. Diante da dor, do desespero, da profunda angústia, a polidez parece uma caricatura frágil da real indiferença. Há algo na polidez que é distância, hiato, decalque. De muito perto, nenhum espelho é suficientemente polido. Mas à distância pressuposta no bom trato não se pode exceder como ocorre no insulto. Ao nomear uma pessoa com o nome de um ser inanimado, de um animal ou de qualquer outra coisa, instalamos um tipo de ruptura que encerra o diálogo.

Há muitos educadores que prezam pela polidez, mas supõem que ela não deva ser ensinada nas escolas. Dizem: “isso não é problema para escola, a boa educação vem do berço, da família”. É claro que a família tem um papel fundamental na construção desses valores e não podemos deixar de cobrar dos pais e responsáveis uma ativa colaboração nesse processo de preparação para o exercício da vida citadina, da cidadania. Na verdade recuperar aquilo que outrora chamávamos de boa educação é uma tarefa que uma nova escola deve repartir com todas as instâncias sociais. Uma nova escola que saiba aprender com o passado a boa educação, para assim eternizar no presente o tempo da delicadeza.
Ricardo Henrique Andrade
Professor de filosofia da UFRB

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